27 maio, 2021

Entrevista com Nick Rodwell revela outra face do chefão da Moulinsart


Nick Rodwell sabe que é odiado por alguns jornalistas e que há um cheiro de hostilidade em relação a ele no ar. Pronto para enviar seus advogados ao front quando a imagem de Tintim está sujeita a ser arranhada, o chefe da Moulinsart atraiu a ira de todo o planeta, que viu, em suas ações, apenas uma abordagem mercantil, brutal, propensa a distanciar as crianças da magnífica, única e sublime obra de Georges Remi, ou Hergé.

Com essas palavras a revista La Libre Belgique introduz uma matéria de quatro páginas de entrevista com o administrador da Moulinsart S.A., empresa que gere os direitos universais  da obra de Hergé. Mas, a mesma matéria parece tentar mostrar o outro lado do "homem mais odiado da Bélgica", ao apresentar uma biografia do marido da viúva de Hergé e revelar aspectos de sua vida pessoal, desde a abstinência ao álcool até o vegetarianismo, passando por suas preferências musicais e artísticas. Curiosamente, aliás, Rodwell não tem Hergé como seu artista favorito, mas sim o pintor Modigliani. 

Nick Rodwell casou-se com Fanny Remi, viúva de Hergé, em 1993. A partir dali, assumiu para si o dever de "proteger e promover a obra de Hergé", como ele faz questão de repetir em toda e qualquer entrevista. Como a reportagem destaca, ao longo de quase trinta anos Rodwell empregou toda sua energia para que a imagem de Tintim permanecesse intacta, mesmo que a sua própria fosse danificada. Por conta de tantas críticas da mídia e das redes sociais, 'recusa a maioria das entrevistas'. Nesta, porém, ele revela sua trajetória desde a infância até a vida escolar, e seus planos para o futuro de Tintim.

Um pouco do passado


Como você descobriu Tintim?

"Quando eu tinha 29 anos, fui a Paris para aprender francês. Minha antiga namorada estava de férias em Portugal. Ela me enviou um cartão-postal explicando que ela tinha uma camiseta com Milu. Comprei um álbum de Tintim, descobri o nome da Casterman, fui para a sede deles na rue Bonaparte em Paris, de onde fui enviado para Tournai, onde conheci Pierre Servais, o homem que mudou minha vida. Conheci Alain Baran, secretário do Hergé, e Viviane Rousie, da Éditions du Lombard, que cuidava do merchandising. E tudo começou assim ... Eu me ofereci para ser o agente deles na Inglaterra. Todos acharam a ideia muito boa. E abrimos uma loja em Londres. Vendíamos cartões-postais e cartões de felicitações, depois camisetas... Não havia livro sobre Hergé em inglês. Traduzi o escrito por Philippe Godin e Jean-Manuel Duvivier. Eu digitei e editei este livro em 5.000 cópias. E vendemos tudo."

Você lia os álbuns de Tintim?

"Não, eu sou da geração da televisão. Descobri Tintim aos 7 anos, graças à série de animação Belvision...Mas eu não tinha lido os álbuns. Eu os li quando tinha 30 anos."

Qual é o seu álbum favorito? 
Não tenho preferência. O álbum favorito de Fanny é Tintim no Tibete porque sua relação com Hergé, ou melhor, com Georges Remi, começou quando ele estava no processo de produção.

Como você conheceu Fanny, a segunda esposa de Georges Remi?
"A partir de 1983, fiz muitas viagens entre Bruxelas e Londres, tornei-me bastante amigo de Alain Baran e de Jean-Manuel Duvivier. Havia passado seis meses após a morte de Hergé. Eu não conhecia Fanny. Em 1986, o pavilhão belga da Expo universal em Vancouver foi uma representação de 'Explorando a Lua'. Tudo foi organizado por Bob de Moor, que trabalhou 35 anos com Hergé. Bob foi para lá com Alain Baran e Fanny. Então Alain Baran me pediu para ir com ele até Los Angeles, onde ele tinha ido com Fanny para encontrar Steven Spielberg, que havia contatado Hergé em 1982... Eu estava com amigos, cheguei de camisa branca, jeans, tênis. Alain Baran e Fanny estavam em trajes de gala. Foi a primeira vez que encontrei Fanny. Para mim foi um grande momento. Nossa história foi formada gradualmente. E em 1 ° de janeiro de 1990, me mudei para Bruxelas para morar com Fanny."

E, muito rapidamente, você quis colocar alguma ordem... 
"Fiz uma auditoria da situação e entendi que não era tão boa, ainda que Tintim tivesse um enorme potencial. Percebi que o trabalho do Hergé não estava bem protegido. A revista Tintin havia se tornado um verdadeiro desastre. No ano seguinte, Alain Baran - que tinha um conflito de interesses... - e todos os outros foram embora. Eu me encontrei no escritório da Avenida Louise, sozinho com a recepcionista. Recomecei do zero."

Eles saíram ou você os despediu?
"Foi o auditor da empresa que pôs Alain Baran para fora. Alain sempre se manteve fiel ao trabalho de Hergé. A gestão era outra coisa. Ele tentou relançar a revista Tintin, mas não deu certo".

Alain Baran, então secretário de Hergé, e Fanny, viúva do artista

Polêmicas do presente


Sua chegada e sua obsessão, no sentido de proteger a obra de Hergé, têm sido muitas vezes duramente criticadas...
"Eu estava ali para defender os interesses de Fanny. Quando Hergé morreu, deixou todo seu legado para Fanny. Se ele legou tudo a ela, não cabia a mim permitir que outros roubassem coisas que não lhes pertenciam. Tentei recuperar tudo para ela porque era ela quem representava Hergé e a sua obra. Eu sou um homem como qualquer outro, eu trabalho pela minha esposa..."

Neste ponto, Rodwell comenta sobre os problemas com as autoridades fiscais da Bélgica, que segundo ele exigiam enormes taxas pela herança de Fanny, o que motivou a partida do casal para a Suíça. 

"Eu percebi que os direitos de Fanny estavam sendo violados... Eu não estou aqui para ganhar dinheiro. Estava lá para proteger Fanny e a obra de Hergé. E para promovê-lo. Seremos julgados cinquenta anos após sua morte. Hoje não. Veremos então se fiz um bom trabalho para proteger a obra de Hergé. Ou não. Quando você tem poder e dinheiro, você é sempre criticado. Você tem que conviver com isso... Às vezes, para chegar lá, você tem que limpar ou atacar. É o que eu faço."

Mesmo que isso signifique atacar simples pesquisadores que querem apenas estudar a obra de Hergé?

"Você pode escrever o que quiser sobre Tintim e Hergé. Tudo. Mas, se quiser usar os desenhos, é obrigado a passar por nós. Nós respeitamos as leis. Para usar os desenhos de Hergé, você precisa de permissão. Aceitamos todos os pedidos se forem bons projetos..."

A reportagem relembra que nem todos os processos tiveram um final feliz para a Rodwell, a exemplo do caso de Xavier Marabout, que teve o direito de parodiar Hergé em suas obras reconhecido pela corte de Rennes. A Moulinsart foi condenada a pagar dez mil euros de indenização por difamação, já que as artes foram enquadradas na exceção de paródia. Sobre o caso, o empresário afirmou que está considerando se deve recorrer, conforme nota divulgada no site oficial Tintin.com.

Uma das artes de Xavier Marabout inspiradas no estilo de Edwar Hopper.
Artista venceu processo movido pela Moulinsart S.A.

Quando o assunto é o valor artístico e comercial de Tintim, Rodwell é enfático: "O trabalho de Hergé não é só de Tintim", e destaca a exposição do Grand Palais, em Paris, que alçou a obra de Hergé ao nível de Hopper ou Picasso. "A exposição do Grand Palais foi para Quebec, Dinamarca, Seul. Em breve estará em Xangai e depois em Lisboa."


Respondendo sobre vendas recordes das pranchas de Hergé em leilões, Rodwell desabafa: "Não era isso que procurávamos. Buscamos posicionar a obra Hergé entre a banda desenhada belga e a arte contemporânea". Para ele, isso não afasta Tintim das crianças, já que os álbuns são "a alma da obra" e continuam sendo vendidos "em todo o mundo em qualquer supermercado ou livraria, podendo ser emprestados em bibliotecas".

Acha que as pranchas deveriam voltar ao Museu Hergé?
"Temos um pequeno problema, não com a Casterman, mas com alguns membros da família Casterman que vendem regularmente as pranchas que lhes foram dadas. Quando fizemos o desenho animado de Quick e Flupke, Fanny e Alain Baran ofereceram duas pranchas de Quick e Flupke aos Castermans para agradecê-los. Uma delas agora está pregada na casa do meu vizinho na Suíça: ele a comprou durante um leilão! ... Guy Dessicy, amigo de Hergé, havia recebido quatro pranchas de Hergé, para suas filhas: cada uma dessas pranchas foi vendida e permitiu que cada criança comprasse uma casa! ... Então, sim, nos magoamos com essas práticas, às vezes ficamos irritados, até agressivos. Um exemplo? A capa do Lótus Azul nunca pertenceu à família Casterman, e isso está provado. Deveria ter sido exibida no Museu Hergé ou emprestada ao museu para sempre. Mas essa capa foi vendida por 2,6 milhões de euros no início deste ano. A família Casterman vende o que foi presenteado e também o que foi roubado. Este é o principal problema. Nós conhecemos o culpado. Para nós, é como um estupro intelectual, uma desonestidade absoluta. Está completamente além de mim."


O que esperar do futuro


Milhões de pessoas, com idades entre 7 e 77 anos, adorariam ler as novas aventuras de Tintim. Por que não confiar a um talentoso roteirista a tarefa de imaginar um novo álbum?
"Porque Hergé disse que não queria que isso continuasse depois dele. Respeitamos seus desejos."

Haverá algum novo filme de Spielberg?
"Não é fácil negociar com os estúdios americanos. Eles têm os direitos e são obrigados a fazer um filme a cada cinco anos e podem renovar a opção a cada dois anos. O segundo filme será dirigido por Peter Jackon... Ele fará o próximo filme. Mas não sabemos quando..."

Patrice Leconte vai dirigir “As Jóias da Castafiore?"
"Ele tem dois produtores charmosos e dinâmicos, mas atualmente todos os direitos estão bloqueados. Talvez eu tente encontrar uma maneira de realizar uma série."


Como está Fanny, sua esposa?
"Ela tem a doença de Alzheimer há vários anos". Rodwell revela que, seguindo um conselho da ex-ministra da saúde da França, Fanny decidiu interromper o uso de medicamentos ineficazes e utilizou o dinheiro recuperado para financiar o apoio a pessoas com Alzheimer. "A única coisa a fazer é acompanhar essas pessoas. É o que faço com Fanny, o tempo todo, todos os dias. Ela vive em casa... você tem que se proteger quando acompanha uma pessoa que sofre desta doença."


Embora seja alvo de duras críticas ao longo de décadas, durante toda a entrevista Rodwell demonstra um grande zelo pela esposa e continua defendendo sua forma de atuação à frente da Moulinsart: "A obra de Hergé jamais foi tão conhecida e bem protegida: tem um museu, as exposições, os filmes. Eu fico chateado porque as pessoas nos criticam o tempo todo". Neste ponto, ele faz uma analogia ao príncipe Phillip, da Inglaterra, que ganhou uma nova imagem diante do público depois da série "The Crown". Ele não acredita que será visto de forma diferente mesmo depois que morrer, mas desabafa: "Me pergunto o papel da mídia na construção de uma imagem".

Nick Rodwell está escrevendo um livro em resposta às críticas sobre seu trabalho. "Trust but verify" (confie, mas verifique) é o título, além de sua frase favorita.
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